As culturas nativas da área do Oceano Pacífico. Luís Covarrubias. Editorial Raízes, México.
As civilizações desenvolveram-se apenas em alguns lugares ao longo do globo terrestre. Dois destes lugares – os Andes e a Mesoamérica – encontram-se na última massa continental a ser colonizada pela humanidade. Desde as terras geladas do Alasca e do Árctico canadiano, atravessando as pradarias da América do Norte, passando pelos trópicos equatoriais e descendo os maciços andinos e as terras baixas Sul americanas, até à Terra do Fogo, as Américas apresentam uma variedade de paisagens e climas que serviram de cenário para os desafios colocados à capacidade de adaptação humana. Em 1519, Hernán Cortés e o seu grupo contemplaram, pela primeira vez, a capital colhua-mexica, Tenochtitlán, flutuando nas águas do Lago Tetzcoco, no planalto central mexicano. O seu companheiro incrédulo, Bernal Díaz, enalteceu a visão desta grande ilha metrópole, com os seus templos, praças, ruas ordenadas, jardins e passagens como “suplantando tudo o que se poderia ver em toda a Europa”.
No entanto, com a invasão ocorrida a partir do século XVI, fracturou-se de forma drástica a continuidade cultural que durante mais de trinta milénios havia inspirado os indígenas americanos forjando a sua própria identidade. Escrevendo por volta de 300 anos depois de Cortés, Charles Darwin descrevia os índios de canoa yahgan, da Terra do Fogo, como “os mais miseráveis infelizes à face da terra”, vivendo no mais baixo grau de existência humana. Darwin não estava consciente que, por décadas, caçadores de baleias e focas dizimaram as colónias de mamíferos marinhos dos quais os yahgan dependiam, introduzindo doenças contagiosas, além do álcool, no decurso da sua passagem, com consequências devastadoras.
Ilustração de embarcação da Polinésia. Fonte: Internet.
As narrativas divergentes coloriram a imaginação europeia que, de certa maneira, continua a ser tão ignorante sobre as culturas ameríndias agora como o era no século XVI. O etnocentrismo ocidental produziu, ao longo do tempo, um discurso parcializado sobre os seus movimentos expansionistas, tendo recebido no apoio da religião um instrumento político, chegando a referir-se à sua acção hegemónica como a fase dos descobrimentos; uma designação despida do seu sentido em relação aos povos e culturas pré-colombianas que continuam a ser propensas a uma classificação de primitivas e misteriosas. A própria questão da “descoberta” da América é, em si, ambígua. Sabemos que o primeiro contacto europeu com as Américas aconteceu através dos vikings, por volta do ano 1000 d.C., cujas colónias na Terra Nova foram possivelmente destruídas pelas populações autóctones. Mais recentemente, no Sul da Islândia, restos de ossadas encontradas foram identificadas, através de testes de ADN, como sendo referentes a homens e mulheres ameríndios trazidos para a Europa pelos povos escandinavos. Fora do contexto europeu é muito provável uma ligação trans-Pacifíco através de povos australianos e polinésios, talvez até antes de Cristo, no extremo Sul do continente americano. No entanto, o discurso oficial do ocidente exclui qualquer precedente, focalizando a sua afirmação em Cristóvão Colombo que, ao invés de um descobridor foi uma espécie de testa de ferro empresarial, ao exterminar as populações arawks, nas Antilhas Maiores, a troco de uma extorsão de recursos que teve a sua consumação, anos mais tarde, na exploração das minas de Potosi, nos Andes Centrais.
Massarocas de milho. Fonte: Internet.
Muitos investigadores estão de acordo que foram necessários 50.000 anos para que o Norte e o Sul do continente americano fosse povoado; sabemos de certeza que os primeiros colonos humanos chegaram à Patagónia por volta de 10.000 anos atrás. Com o aquecimento global que se seguiu no final da última idade do gelo, os habitats naturais favoreceram o desenvolvimento estável das diversas comunidades, proporcionando a transição gradual da caça e da recolecção para a agricultura. Tal como na Europa, algumas plantas selvagens tornaram-se colheitas altamente produtivas como resultado de milhares de anos de selecção e criação humana. Nas terras baixas da América do Sul este processo inclui a cassava – também conhecida como yuca ou mandioca, que requer uma tecnologia sofisticada de processamento – e outros tubérculos, picantes, amendoins, tabaco e algodão. Nas terras altas da América do Sul lamas e alpacas domesticados providenciaram carne para alimentação e lã, como serviam de animais de transporte bem adaptados ao terreno vertiginoso. O cavalo nativo americano extinguiu-se muito cedo, sendo que o cavalo que nos é familiar só foi reintroduzido na América no século XVI pelos espanhóis. O porco da Guiné foi outra fonte alimentícia – complementada com batata, feijão e quinoa. Na Mesoamérica o milho foi de importância estrutural, uma vez separado do seu progenitor selvagem – evitando assim uma criação cruzada – foi adoptado tanto na América Central como na América do Sul; permitindo o crescimento demográfico e aumentando a complexidade social.
Pintura de Monte Albán. Miguel Covarrubias, Museu Nacional de Antropologia e História, Cidade do México. Fotografia de Tempo Ameríndio.
Tal como em outras partes do globo a competição pelas melhores terras aráveis e água levaram à ascensão das elites governantes que presidiam sobre a agricultura e a produção de artefactos. Por seu lado, este processo levou ao crescimento da religião e à criação de obras de arte que reflectem tanto as preocupações espirituais como políticas. Desta forma, nas costas do Golfo do México, de 1200 a.C. para diante, a precoce cultura olmeca criou o primeiro grande estilo de arte mesoamericana. Esta cultura foi seguida pela ascensão das cidades estado maias, cujos relevos e hieróglifos esculpidos em pedra assinalam eventos decisivos na vida dos seus reis e rainhas. No planalto central do México, agricultores, artesãos e comerciantes mantiveram a cidade cosmopolita de Teotihuacán, acomodando uma população de 200.000 habitantes por volta de 500 d.C., fazendo desta um dos seis maiores centros urbanos do seu tempo. Teotihuacán continua a servir como exemplo de metrópole modelo, com um centro urbano multi-étnico alimentado por uma rede de comércio a longa distância.
No vale de Oaxaca, os zapotecas e posteriormente os mixtecas alargaram progressivamente o centro de Monte Albán, com os seus templos, tumbas e campos de jogo localizados numa esplanada no alto de uma montanha. Entretanto, mais para Sul, na costa peruana do Pacífico, produziu-se uma tradição de grandes recintos cerimoniais em forma de U, com uma arquitectura monumental e praças afundadas que precederam a introdução quantitativa da cerâmica. Facto que vem trazer uma nova premissa à investigação científica, já que usualmente se considera o surgimento de culturas através da cerâmica, o que não aconteceu no espaço andino, onde os têxteis e a arquitectura prevaleceram como elementos fundadores. Ainda anterior a estes centros e até mesmo antes do florescimento da civilização olmeca, Caral, situada perto da costa, no centro do Peru, é considerado o primeiro complexo urbanístico de todo o continente americano, na mesma época em que florescia a civilização egípcia.
Vista geral de Machu Picchu, Peru. Fonte: Internet.
O ritual e a cerimónia também deixaram a sua marca em Chavín de Huantar, no flanco Este da Cordilheira dos Andes, na forma de imagens interligadas de animais e pássaros. A arte de chavín exerceu uma influência seminal na cultura andina, sendo que os estados costeiros como os moche, nazca e chimú desenvolveram estilos de arte inovadores e diferenciados. Os vasos moche rivalizam na destreza com as cenas pintadas nos vasos Áticos da Grécia antiga; enquanto a estética de mancha policromática da cerâmica nazca aponta para a estilização abstracta, milhares de anos antes da arte ocidental colocar tais questões nas suas expressões artísticas. Os domínios contemporâneos de Wari e Tiwanaku, das terras altas andinas, tinham já criado estilos abstractos geométricos que utilizaram em têxteis, olaria e trabalhos escultóricos.
Qualquer pessoa que tenha percorrido os antigos caminhos que atravessam os Andes, levando ao topo da cidadela de Machu Picchu – empoleirada no topo de uma alta montanha com vista para o rio Urubamba – terá ficado maravilhada pelo engenho e capacidade envolvida na sua criação. Em torno deste sítio encontram-se fileiras rítmicas de terraços agrícolas que desempenharam um papel crucial na manutenção desta localidade. Ao domar as encostas vertiginosas, os incas tornaram um nicho ecológico previamente inexplorado, entre os vales baixos e as altas punas de campos de ervas, num terreno agrícola extremamente produtivo. A sua sabedoria em relação às necessidades pragmáticas da gestão de água e tecnologia de irrigação juntava um conhecimento consumado da paisagem com uma sensibilidade estética sem precedentes. A vasta grandiosidade destes terraços em Pisac, Moray e Ollantaytambo ainda nos tira a respiração hoje em dia. Na costa desértica do Peru a irrigação tinha sido utilizada durante milénios para suportar uma agricultura de vale intensiva, a par com uma crescente especialização na fauna marítima, que capitalizou o bem estar dos recursos piscatórios nas margens do Oceano Pacífico.
Canais de regadio, América do Sul. Fonte: Internet.
Em outros ambientes, como as terras de ervas inundadas sazonalmente de Llanos de Mojos na Bolívia, em redor do lago Titicaca e nas bacias do Grande Rio das terras baixas da Colômbia e Equador, a criação de padrões complexos de campos levantados e canais permitiu um micro clima favorável que terá facultado a estes agricultores primordiais colheitas milagrosas. Técnicas similares foram aplicadas no planalto mexicano e nas terras baixas dos maias. Todos estes complexos foram geridos de forma superior, paisagens “domesticadas” que requeriam uma enorme concretização de trabalho para projectar, construir e manter.
Desde os têxteis bordados de paracas – que eram os mais finos em qualquer parte do mundo ao seu tempo – à fusão e elaboração de uma gama de mistura de metais, as origens da metalurgia recuam quase 4.000 anos na América do Sul. O continente americano criou uma diversidade cultural espantosa, em cada nicho ecológico disponível, desde a costa aos desertos, desde as terras baixas ribeirinhas às elevadas montanhas de terras verdejantes.
Volador totonaca. Editorial Raízes, México.
Ao longo da América as culturas desenvolveram os seus calendários para marcar os movimentos do sol, da lua e das estrelas. A arquitectura pública inicial era produto do empenho colectivo para controlar as poderosas forças naturais que governavam as alterações sazonais e o sucesso das colheitas. A posição dos templos era frequentemente ligada ao ritmo do cosmos. Os sacerdotes estavam encarregues com a tarefa de alinhamento dos locais sagrados e templos, como a kalasasaya – o recinto sagrado – em Tiwanaku ou o Templo Maior de Tenochtitlán, dispostos em lugares chave, relativamente ao nascer e ao pôr do sol. Estes locais dão-nos um vislumbre do conhecimento impressionante das matemáticas e astronomias pré-hispânicas.
Estruturas monumentais foram construídas na forma de plataformas aplanadas, abrangendo desde os montículos de terra da cidade de Cahokia, no vale do Mississípi perto de Saint Louis, até às fachadas de pedra das pirâmides de Tlalóc e da “Lua” em Teotihuacán, além das estruturas monumentais, construídas em adobe, na costa peruana, como a Pirâmide do “Sol” no vale de Moche. Nenhuma destas construções assume a forma clássica triangular das pirâmides do Egipto e, de facto, não devem nada a contactos ou influências externas ao continente americano. Elas reflectem uma tendência humana universal para segregar o espaço secular e sagrado, tal como aconteceu com os zigurates no antigo Iraque.
Reconstituição digital de aldeamento iroquês. Fonte: Internet.
Ao contrário da Eurásia as Américas não viram a emergência de um grande império até ao século XIV d.C. – uma característica que tem levado à diminuição destas culturas como sendo “atrasadas”. No entanto a Constituição da Confederação Iroquesa foi inspiradora do Congresso Norte Americano, na procura de consensos entre o Senado e a Casa de Representantes. Seria importante sublinhar que, tanto nas macro estruturas como no âmbito das comunidades simples ameríndias, a reciprocidade caracterizou o seu padrão de vida socioeconómico, independentemente dos constrangimentos políticos.
Por volta de 1400, emergiram duas potencias com o intento de exercerem o controlo numa escala sem precedentes. Na Mesoamérica o domínio dos mexica promoveu um estado de ideologia mítico-militarista, desenvolvendo uma extensa rede comercial para assegurar materiais valiosos, incluindo a obsidiana, o algodão além de materiais exóticos como as deslumbrantes penas de quetzal. Entretanto, os incas, evoluindo sob tradições andinas mais antigas, criaram não só o maior império nativo das Américas, como consolidaram o seu poder na forma de um estado, tal como estes são reconhecidos ao longo da história. Expandindo-se com uma admirável rapidez, desde a sua terra natal no vale de Cuzco, governaram sobre um vasto território da cordilheira andina Sul americana. Tal como os mexica, perseguiam o domínio de bens materiais, penteando obsessivamente o seu império para terem acesso às espinhosas ostras – as spondylus princeps – reverenciadas pela sua concha de vermelho sanguíneo.
Museu do Templo Mayor, Cidade do México. Fotografia de Tempo Ameríndio.
Para onde se dirigiam as antigas culturas americanas, sob a égide destes dois regimes poderosos, nunca chegaremos a saber. Subitamente, estrangeiros que atravessaram o Oceano Atlântico introduziram um novo e inesperado desafio. Não tendo sido recebidos como deuses, ao contrário do que afirma a versão lendária da história, souberam, no entanto, explorar as tensões políticas e culturais existentes no seio das sociedades ameríndias – por exemplo, o império Inca vivia o final de uma guerra civil à chegada de Francisco Pizarro que se prolongou por mais 30 anos; com a competição pelo poder repartido entre a legitimidade indígena, os aventureiros que de forma corrente chamamos conquistadores e a coroa espanhola.
Milhares de anos de inovação cultural independente da América tinha acabado ao ser submetida por ideias e práticas que vinham da Europa, África e Ásia. A imposição religiosa, a penetração cultural e económica abalou o núcleo social e em muitos casos chegou a desintegra-lo, provocando a marginalização das comunidades. Os antigos habitantes da América sofreram com o choque desta invasão e subsequente colonização; o genocídio, a exploração calculada e a destruição cultural sistemática foram as ferramentas de uma expressão assente na iniciativa privada apoiada pelos estados soberanos europeus que deram inicio, no século XVI, ao processo de globalização da qual continuamos a fazer parte.
Principais etnias ameríndias no século XVI. Mapa de Carlos Punta e Tempo Ameríndio.
Outra consequência nefasta destes acontecimentos foi que teriam que passar muitos anos para que se inicia-se um estudo sério que permitisse recuperar à América antiga o seu lugar dentro do património da humanidade. Não obstante de um reconhecimento cultural cada vez mais patente, as comunidades indígenas americanas continuam a ser uns estranhos na sua própria casa e, no entanto, foram vastas e importantes as suas realizações em vinte ou vinte e cinco mil anos de história independente. Estes povos conseguiram uma das mais admiráveis demonstrações de história cumulativa que existiram no mundo: erigindo uma arquitectura de sentido cosmológico, desenvolvendo sociedades complexas com índices de higiene e reciprocidade que o “Velho Mundo” nessa altura não praticava, explorando a fundo as fontes do meio natural, domesticando ao lado das espécies animais as espécies vegetais mais variadas para a sua alimentação, os seus remédios e os seus venenos – facto nunca antes igualado – promovendo substancias ao papel de estimulantes ou de anestésicos; coleccionando certos venenos ou estupefacientes em função das espécies animais sobre as quais exercem uma acção electiva. Levando determinadas industrias como a tecelagem, a cerâmica e o trabalho de metais preciosos ao mais alto nível de perfeição. Para apreciar esta obra, basta medir a contribuição da América para as civilizações do “Velho Mundo”. Em primeiro lugar a batata, a borracha, o tabaco e a coca – base da anestesia moderna – que, a títulos sem duvida diversos, constituem quatro pilares da cultura ocidental. O milho e o amendoim, que vieram a revolucionar a economia africana antes talvez de se generalizarem no regime alimentar da Europa; em seguida, o cacau, a baunilha, o tomate, o ananás, o pimento, várias espécies de feijão, de algodões e de cucurbitáceas, uma família de plantas de haste rastejante como a abóbora ou o melão.
O hieróglifo maia para 0. Edições Könemann, 2006.
Finalmente, não poderíamos deixar de referenciar o zero, base da aritmética e, indirectamente, das matemáticas modernas, que era conhecido e utilizado pelos maias pelo menos meio milénio antes da sua descoberta pelos sábios indianos, de quem a Europa o recebeu por intermédio dos árabes. Talvez por esta razão os calendários mesoamericanos fossem mais exactos que os do “Velho Mundo”. A questão de saber se o regime político dos incas era socialista ou totalitário já fez correr muita tinta. Apresentava, de qualquer maneira, as formas mais modernas e tinha em avanço vários séculos sobre os fenómenos europeus do mesmo tipo.